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Por que o Telegram se tornou “refúgio” da extrema direita no Brasil

Os atos golpistas realizados em Brasília no último domingo (8) foram amplamente divulgados em diversas redes sociais, mas uma delas teve papel especial para o seu desenrolar. O Telegram há tempos tem abrigado diversos grupos bolsonaristas e extremistas, e foi usado para a organização dos ataques realizados aos edifícios dos três poderes na capital.

Em entrevista a Época NEGÓCIOS, Carlos Affonso Souza, Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade, afirma que as funções mais atraentes para extremistas e falta de moderação tornam o Telegram propício para esses grupos agirem virtualmente.

“O Telegram sempre foi visto como uma rede propícia para discursos mais extremistas, que não teriam lugar em outras plataformas. De certa maneira, a plataforma combina elementos de aplicativos de mensagens instantâneas com outros de rede social, o que o torna mais atraente para esses grupos”, aponta.

Origem do Telegram
O Telegram foi criado em 2013 pelos irmãos russos Nikolai e Pavel Durov. A plataforma logo se tornou um ambiente procurado para pessoas que desejavam passar despercebidas das autoridades, incluindo grupos políticos extremistas em diferentes países.

Aos poucos, sua popularidade chegou ao Brasil, impulsionada por funcionalidades que a diferenciavam do Whatsapp – a criação de canais e o uso de figurinhas, por exemplo. Em momentos em que o Whatsapp apresentou problemas técnicos, o Telegram ganhou usuários no país. “Por um tempo, ele foi visto como como plano B ao Whatsapp”, diz Carlos Affonso Souza.

No entanto, foi com o acirramento dos ânimos políticos no Brasil e a atuação do Whatsapp e de outras plataformas para coibir fake news que o Telegram se popularizou entre a extrema-direita brasileira.

Atrativos do Telegram para grupos extremistas
Segundo Souza, um dos atrativos da plataforma para grupos extremistas é a possibilidade de ter grupos com até 200 mil pessoas – no Whatsapp, o número máximo de participantes é de 1.024 pessoas. O Telegram conta ainda com o recurso de canais, em que somente o administrador pode postar, mas para uma audiência ilimitada.

“Ou seja, há ambientes com troca de informações, e também comunicações unidirecionais que facilitam a coordenação deles. Isso permite uma comunicação muito mais abrangente que no Whatsapp”, explica o professor da UERJ.

A inação do Telegram em coibir discursos tóxicos, fake news e atividades criminosas também é favorável aos grupos extremistas. “A gente sabe que eles são conhecidos por não exercerem moderação de conteúdo. Então a plataforma é vista como uma rede mais permissiva para determinados conteúdos”, diz Souza.

Mesmo nos raros casos em que o Telegram coibiu minimamente a atuação criminosa em seus ambientes, não é difícil para esses grupos se reorganizarem, já que a plataforma permite encontrar rapidamente grupos pelo nome ou palavras-chave em sua busca interna.

Telegram e os problemas com a Justiça
Esse perfil permissivo trouxe problemascom a Justiça brasileira em 2022. Em março do ano passado, o ministro do STF Alexandre de Moraes chegou a determinar o bloqueio da rede por “desprezo à Justiça e total falta de cooperação”. A plataforma não havia atendido a um chamado para colaborar contra a disseminação de fake News e falhou em obedecer decisões judiciais para bloquear determinados perfis.

Foi depois desse episódio que o Telegram atuou “minimamente” para coibir alguns usos de sua plataforma, diz Souza. Mas ainda de forma insuficiente. “A moderação de conteúdo é mínima”, afirma.

Telegram como “laboratório” de conteúdos para outras redes
Segundo Souza, parte da importância do Telegram para grupos extremistas está no papel de “laboratório” de conteúdos e narrativas que acabam indo parar em outras redes. No caso dos ataques do último domingo, ele foi usado para organizar os atos e também para combinar o discurso que seria usado em Brasília. Durante os atos golpistas, as manifestações aconteceram em outras redes que permitem “furar a bolha”, como Instagram, Twitter e outras.

“O Telegram serve como laboratório para testar quais são as palavras-chave, as narrativas que geram maior engajamento. Muitos dos memes, das palavras que se popularizam são testadas ali para que se veja quais conteúdos podem pular para outras plataformas. E esses conteúdos chegam a outras pessoas que não estão tão engajadas, mas podem se juntar aos atos”, explica o professor.

Maior regulamentação
O uso do Telegram e outras redes sociais para os ataques golpistas em Brasília deve reacender o debate sobre maiores regulamentações de plataformas digitais no Brasil, segundo Carlos Affonso Souza.

“Não tenho a menor dúvida de que 2023 é o ano em que vamos debate a regulamentação de plataformas e redes sociais. O Brasil não é terra sem lei sobre isso, a gente tem o Marco Civil da Internet, mas está claro que há medidas que precisam ser aperfeiçoadas. E me parece que o governo atual tem muita clareza sobre esse ser um ponto prioritário”, afirma

Vale lembrar que a intenção de criar normas mais estritas para evitar a disseminação de fake News e o planejamento de atos criminosos nas plataformas digitais já fora mencionada por Lula e pelo PT antes das eleições do ano passado. Representantes do Judiciário também já se manifestaram a favor de iniciativas do tipo. E, após os atos do último domingo, que foram amplamente organizados e divulgados em redes sociais, a questão ficou novamente em evidência. “Se tivermos uma nova regulamentação, o Telegram vai cumprir? A gente pode ter mais um ponto de tensionamento para acompanhar”, aponta Souza.

“É importante ressaltar que, embora o Telegram tenha papel central na organização desses atos, outras plataformas ainda oferecem terreno fértil para extremistas. Souza cita os apps de vídeos curtos, como TikTok e Kwai, como casos de atenção especial, além do Gettr, que já nasceu em um ambiente de extrema direita e foi amplamente usado em atos do último 7 de setembro.

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