Para a autora canadense, fake news sobre o RS são uma reação à evidência de que este modelo de sociedade é insustentável
“Um modelo de apartheid de desastre” está emergindo em todo o planeta, alerta a jornalista e escritora canadense Naomi Klein, que se diz “horrorizada” ao acompanhar, nas notícias, a tragédia que atinge 2,4 milhões de pessoas no Rio Grande do Sul (RS).
Exemplificando com o mercado de condomínios de luxo preparados para enfrentar furacões nos EUA, Klein aponta como a recorrência de eventos extremos fará com que, cada vez mais, ricos comprem sua segurança neste nicho econômico em expansão, enquanto a população em geral se torna mais “sacrificável”.
Por outro lado, a escritora avalia que eventos da magnitude das enchentes no RS evidenciam a existência e os impactos devastadores de uma crise climática gerada por um modelo de desenvolvimento neoliberal.
Este entendimento por parte da população “pode ser uma crise para a direita”, diz. “É por isso que vemos no Brasil, neste momento, uma enxurrada de desinformação por parte de canais de direita: eles têm medo de que os fatos sejam prejudiciais para a sua agenda política”, afirma Klein.
Chuva de peixes caindo em Santa Maria (RS), barragens sendo abertas por governos para inundar as cidades, Receita Federal impedindo a entrada de caminhões com doações por falta de nota fiscal, crianças boiando nos rios Sinos e Gravataí, a proibição de donativos e Madonna doando R$10 milhões aos desabrigados são exemplos das tantas fake news que ganharam as redes no último período.
Klein é autora, entre outros, do livro A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Nele, mostra como o mercado e o Estado usam eventos extremos para fazer avançar seus negócios de forma que, em momentos de normalidade, não conseguiriam. Foi a partir da experiência de Nova Orleans depois da devastação causada pelo furacão Katrina, em 2005, que ela começou a elaboração.
Entre as empresas que atuaram neste processo, marcado pela privatização do sistema de ensino e a gentrificação da cidade estadunidense, estava a Alvarez & Marsal – contratada agora pelo governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB) para a reconstrução do Rio Grande do Sul.
Em conversa com o Brasil de Fato durante viagem na costa oeste do Canadá, perto de Vancouver, a ativista canadense destacou o que observa como a principal novidade do capitalismo de desastre ao longo das quase duas décadas que separam as inundações de Nova Orleans e de Porto Alegre.
Se teorias conspiratórias sempre existiram, agora – impulsionadas pela monetização nas redes, a ascensão do fascismo e o negacionismo climático – elas se tornam uma indústria por si só. Assim, defende Klein, “precisamos de políticas climáticas visionárias entendidas como antifascistas”.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Aqui no Brasil, o Rio Grande do Sul vive a maior tragédia climática da sua história. Governos contrataram empresas de consultoria estrangeiras, como Mckinsey e Alvarez e Marsal para atuar na reconstrução das cidades. Essa última é a mesma que atuou em Nova Orleans depois do furacão Katrina. Como o estado e o mercado agem para fazer avançar seus negócios nestes contextos de choque? O que foi possível aprender, por exemplo, dessa experiência do Katrina?
Naomi Klein: A primeira coisa que quero dizer é o quanto eu lamento [as enchentes no sul do Brasil]. Estou horrorizada com as notícias. Eu visitei Porto Alegre algumas vezes por causa do Fórum Social Mundial e tenho lembranças muito boas. Apesar de o estado estar nas mãos de políticos de direita no momento, ele possui uma tradição comunitária, coletiva e democrática muito profunda.
O perigo, principalmente quando há políticos de direita no poder, é que esses momentos sejam usados para maior concentração de poder e riqueza. Como se o desastre criasse uma espécie de folha em branco. “Ah, bom, agora vamos reconstruir”, dizem, como se fosse uma terra nova. É nesse momento que conquistas feitas pelos movimentos sociais ao longo de muitos anos para proteger recursos públicos e territórios comuns são frequentemente revertidas.
Você mencionou Nova Orleans. Foi onde, logo depois do furacão Katrina, eu comecei a escrever sobre o tema e nomeei isso de capitalismo do desastre e doutrina do choque. Eu estava falando sobre o uso do estado de choque para fazer passar uma agenda política pré-existente.
Tem uma complexidade aí quando o desastre é claramente impulsionado pela crise climática. Porque, é claro, muitas figuras de direita negam explicitamente a crise climática. Outras a negam no sentido de flexibilizar ou se opor a qualquer política que reduza os fatores que a provocam. Há os negacionistas ferrenhos, você sabe, e há os negacionistas mais brandos.
Mas quando se tem um desastre dessa magnitude, fica evidente que nosso planeta está superaquecendo e que este cenário se cruza com as políticas neoliberais. É essa junção o que realmente cria esses megadesastres, como barragens que colapsam ou, no caso de Nova Orleans, diques que desmoronam.
Isso pode ser uma crise para a direita. E eles entendem isso, pois a população está vendo as razões pelas quais é preciso investir em infraestrutura e reduzir as emissões [de gases do efeito estufa]. Portanto, é também por isso que estamos vendo no Brasil, neste momento, uma enxurrada de desinformação por parte desses canais de direita: eles têm medo de que os fatos sejam prejudiciais para a sua agenda política.
Pesquisadores alertam que as tragédias ambientais vão ser cada vez mais frequentes e que, assim, o capitalismo de desastre deve se tornar mais complexo e sofisticado. Você concorda?
Qualquer empresa que lucra com desastres sabe que esse é um setor de enorme crescimento, quer estejam retirando escombros ou construindo moradia para fins lucrativos em áreas antes de ocupações ou de habitação acessível. Eles vão avançar em todas as frentes. E fica mais sofisticado a cada vez.
Nos Estados Unidos, depois do furacão Sandy, vimos o fenômeno do que seria uma espécie de “seguro ouro” oferecido aos ricos. São produtos sofisticados vendidos para as classes altas se salvarem dos desastres. Condomínios que se vendem como preparados para os furacões, por exemplo.
Então, você realmente vê um modelo de apartheid de desastre emergindo. Dessa maneira, as pessoas que podem se dar ao luxo de estar seguras – de estar mais seguras – pagarão por isso. E as pessoas que não puderem pagar serão tratadas cada vez mais como sacrificáveis.
Isso está relacionado com o que acontece na Palestina. Pensar nisso que o Gustavo Petro [presidente da Colômbia] falou, que o que está ocorrendo em Gaza é o modelo de como o mundo rico trata os pobres na era da desestabilização e migração climática. E é implementado não só pelos ricos do Norte Global. Os abastados do Sul Global também adotam este modelo de apartheid climático ou apartheid do desastre.
Portanto, veremos mais sofisticação, mas também acho que precisamos de uma resposta muito mais responsável, ética e visionária por parte da esquerda e dos seus políticos. Que tenham realmente a coragem de proibir a exploração econômica em cima destes eventos, seja durante uma pandemia ou um desastre climático.
E as pessoas detestam ver lucro em cima de desastres. Porque entendem o quanto é injusto. Portanto, se houver políticas efetivas proibindo, por exemplo, que empresas aumentem os preços da água e de remédios, podem ser muito populares.
A desinformação que estamos vendo no Brasil é muito assustadora e veremos isso cada vez mais – já estamos vendo. Vimos isso no Canadá durante incêndios florestais. Muitas das pessoas que se envolveram em fake news sobre a Covid-19 estão agora focadas na desinformação climática durante os desastres. Vimos isso durante o incêndio florestal em Maui [no Havaí]. Eles estavam colocando a culpa pelo fogo em um laser espacial ou coisa do tipo. Enfim, qualquer coisa conspiratória que desvincule os fatos do desastre climático e neoliberal.
No livro Tudo pode mudar: capitalismo vs. clima, você defende a organização de um movimento de massas para a ação climática, articulado com a luta por mudanças no sistema econômico. É possível que eventos extremos, por revelarem uma falência da forma como as coisas estão, impulsionem a luta por mudanças?
Bem, acho que em momentos como o que vocês estão vivendo no Brasil, realmente vemos que a mudança climática não é uma ameaça futura, ela está aqui, agora. E estamos caminhando para um futuro de choques climáticos, pandêmicos e econômicos – estão interligados. Isso significa que haverá deslocamentos de populações em grande escala, tanto internamente nos países quanto entre países.
Já vivemos um vislumbre disso agora, com a intersecção destes choques com as políticas neoliberais de austeridade. Nossos sistemas de moradia, por exemplo, já estão reduzidos ao mínimo, não há moradia acessível para todos.
E assim, quando ocorrem esses choques, mesmo que a resposta imediata seja muitas vezes bonita e solidária – as pessoas querem ajudar seus vizinhos ou pessoas que nunca viram antes, entendem que as principais vítimas da crise não são as que a criaram -, mesmo assim não há espaço para a inclusão das pessoas nas políticas existentes.
E como não há espaço no sistema, porque nossa esfera pública tem sido tão deliberadamente privada sob tantas décadas de neoliberalismo, isso significa que é muito fácil para as forças de direita e fascistas colocar as pessoas umas contra as outras. E é aí que entra a desinformação.
Portanto, precisamos de políticas climáticas visionárias que sejam entendidas como políticas antifascistas. Quando você investe em moradias para pessoas de baixa renda, no direito à água, à alimentação, você cria uma abertura no sistema. O que significa que você entende que haverá um choque. E é preciso se preparar para ele. Não se pode ter austeridade em um contexto como esse.
Precisamos, portanto, de uma distribuição real da riqueza, de políticas que taxem os poluidores ou até mesmo nacionalizem os setores poluidores para que tenhamos a riqueza remanescente da era dos combustíveis fósseis para pagar por essa transição.
É aí que estará nossa resistência ao choque e nossa resistência às forças fascistas. É o que pode nos impedir de caminhar em direção à direita fascista em momentos de choque e desastre.
Recentemente você lançou o livro Doppelganger: a trip into the mirror world [Doppelganger: uma viagem ao mundo do espelho, em tradução livre]. Nele, você fala sobre a polarização política mundial nas redes. Pode falar um pouco sobre esse novo trabalho?
Nesse livro eu me aprofundo nas ideias de conspiração, desinformação médica e a sua relação com o negacionismo climático na cultura online em geral.
Se eu olhar para o capitalismo de desastre da época do furacão Katrina, em 2005, até onde estamos agora, quase 20 anos depois – com pandemia, mudanças climáticas e as guerras em andamento -, noto uma grande diferença.
Sempre há ideias conspiratórias que surgem durante desastres. Haverá quem dirá “talvez a coisa toda tenha sido planejada”, “talvez tenha sido uma conspiração para explodir os diques ou abrir as barragens”. Sempre houve essa tentativa de encontrar sentido para uma situação extrema, inclusive diante do fato de que, claramente, algumas pessoas estão se beneficiando com ela.
Mas o que mudou agora é que as conspirações são, elas próprias, uma indústria. Se você espalhar uma teoria absurda sobre quem está por trás das enchentes no Rio Grande do Sul, vai conseguir muito engajamento no Telegram, no Twitter ou onde for. Você será recompensado por mentir. E se souber monetizar no mundo online, será financeiramente recompensado.
E se você tiver um projeto político, poderá lucrar tanto financeira quanto politicamente com esse tipo de desinformação conspiratória. Isso também é capitalismo de desastre. Temos uma ecologia da informação que está tão poluída quanto as águas das enchentes no Brasil neste momento.